Das Peregrinações Cristãs/Católicas ao Turismo Religioso
Para quem busca Deus, a ideia de ir até onde Ele se manifestou é natural, tratando-se de um instinto profundo, que conduz o ser humano a procurar, num lugar distante, o que é incapaz de encontrar perto dele (Malherbe, 1992).
Na realidade, a ida a um santuário é, em grande parte, a exteriorização de uma necessidade de proteção, contra a hostilidade do quotidiano, exprimindo-se na veneração, quer isolada, quer coletiva. Em qualquer dos casos, a peregrinação compreende sempre duas perspetivas: uma de ordem espiritual e outra de ordem prática - designando-se a sua interligação por turismo religioso. A primeira é, na sua génese, a motivação que suscita a vontade de viajar; a segunda inclui, entre outros, a deslocação e muitas vezes a estada na localidade onde se situa o santuário (Ambrósio, 2000).
Mas muito antes dos grandes fluxos turísticos, já as pessoas cruzavam as fronteiras, em peregrinações para os grandes santuários. Estas foram as principais responsáveis pela fundação de numerosas estruturas de acolhimento e pelas obras de arte criadas em locais de culto (constituindo, no presente, recursos importantes no âmbito do turismo religioso e cultural).
A peregrinação é um fenómeno ligado a todas as religiões, já existindo antes dos livros bíblicos. Pinturas datadas do Paleolítico, cujo significado é quase certo religioso, fazem supor que os povos, desse tempo, fariam peregrinações de súplica, ou agradecimento, pelas suas caçadas.
No século VIII AC, na Grécia Antiga, pode destacar-se o festival de Olímpia, em honra de Zeus, celebrado todos os quatro anos.
Na Bíblia (Antigo Testamento), aparece a figura do autêntico peregrino; Abraão, obediente à voz de Deus, num ato de fé absoluta, deixou tudo e pôs-se a caminho. Moisés, ao tirar os seus irmãos da escravidão do Egipto, por ordem de Deus, tornou-se o organizador e animador da mais difícil “peregrinação” realizada através dos tempos. Já no Novo Testamento, o Evangelho de Lucas mostra que os pais de Jesus iam todos os anos à Páscoa, no quadro de uma peregrinação coletiva que juntava familiares e conhecidos e Este também a fez, quando atingiu a idade de 12 anos.
Na época do imperador romano Constantino (reinou entre 306 e 337), sua mãe, Santa Helena, mandou construir basílicas nos locais onde se crê que Jesus nasceu, foi crucificado e amortalhado. Em 380, Teodósio decreta o cristianismo como religião oficial do império (Édito de Tessalónica), construindo-se, então, numerosos edifícios nos lugares santos.
Em 638, o Califa Omar conquistou Jerusalém. Os novos donos respeitaram os lugares santos e deixaram-nos nas mãos dos guardiães anteriores (embora os cristãos se tenham tornado cidadãos de segunda classe).
A partir do século X, o Ocidente cristão expandiu-se: na Espanha, a Reconquista (até ao século XIII) alastrou-se à grande maioria da Península; a evangelização da Hungria permitiu abrir uma rota terrestre para os lugares santos; no Mediterrâneo, a reconquista da Sicília tornou as viagens de barco ao Próximo Oriente bastante mais seguras; em 1099, com o incitamento do Papa Urbano II para a Guerra Santa, os cruzados tomaram de assalto Jerusalém e estabeleceram um reino latino; em complemento, com a conversão dos povos escandinavos, a Europa cristianizou-se por completo. À expansão política, juntou-se a económica, promovendo esta, as trocas e favorecendo os contactos e as viagens; a melhoria dos meios de comunicação, em particular os marítimos, permitiu a um número crescente de peregrinos de se deslocarem além-fronteiras.
Na realidade, os séculos XI e XII marcam uma etapa importante na história das peregrinações cristãs, pois, por um lado, desenharam-se os itinerários para os santuários com projeção internacional, nomeadamente Roma (Itália) e Santiago de Compostela (Espanha), aduzindo-se a estes, uma rede de santuários secundários, e, por outro, definiram-se, os elementos que faziam do peregrino um viajante especial. A pensar nos que tinham de percorrer longas distâncias, foi elaborado, no século XIII, uma regulamentação internacional; esta protegia o peregrino da prisão arbitrária e da agressão, assim como da exploração económica, estando o mesmo, inclusive, isento de portagens e outras taxas.
No decorrer dos séculos XIV e XV, multiplicaram-se as indulgências e jubileus num número crescente de santuários, popularizando-se a peregrinação. Com uma procura acrescida, editaram-se bons guias de viagens, com descrições precisas. No entanto, muitos peregrinos resistiam mal às tentações que encontravam no caminho e contribuíam para a reputação de falsos peregrinos; “era grande o número dos que se comportavam como turistas, avant la lettre, manifestando mais curiosidade que devoção, já para não falar dos que assumiam comportamentos de aventureiros mundanos.” (Rapp, 1982: 215).
Os doutores, cujo destaque aumentava com a propagação das universidades, denunciavam o que as peregrinações tinham de errado; os humanistas analisando-as de forma sarcástica, criaram um arsenal de opiniões que viriam a sustentar algumas das teses dos reformadores.
No âmbito do Protestantismo, Martinho Lutero advogava a ligação entre o crente e Deus, sem passar por um intermediário; “atos concretos, tais como a veneração de relíquias e, consequentemente, a peregrinação aos santuários onde elas eram veneradas, deixava de ter sentido, pois esta oferecia inúmeras ocasiões de pecar e desprezar os mandamentos de Deus.” (Sauzet, 1982: 238).
Nos países católicos, com o Concílio de Trento e a Reforma Cristã (séc. XVI), legitimou-se a peregrinação. No entanto, a Igreja tridentina iria assumir um controlo rigoroso sobre os abusos e superstições, ligados às práticas religiosas (entre estas, as peregrinações). Na sequência da Reforma Cristã, reforçou-se a exaltação do culto da Virgem (venerada como triunfadora sobre os inimigos da Igreja e pela intercessão nos grandes sucessos militares sobre o Islão), dando origem a inúmeros santuários marianos. Outro traço marcante desta época, foi a descoberta de novos mundos, onde o Catolicismo pôde alargar o seu campo de influência.
Apesar de ter ocorrido a recuperação das peregrinações, apoiada pela pastoral barroca, e orientada, nomeadamente, para a devoção mariana, não se anularam as críticas em relação às mesmas.
De acordo com os filósofos iluministas, se Deus existia, para O satisfazer, bastaria um vago pensamento diário para Lhe agradecer a vida concedida, e o cumprimento honesto dos deveres humanos; qualquer outra ação, pretensamente religiosa, seria uma manifestação de superstição e daí a Enciclopédia encarar a peregrinação como uma viagem de devoção mal interpretada e fora de moda. Também os príncipes iluminados escarneciam “dos braseiros de velas, das estátuas vestidas como ídolos, dos rebanhos de homens e mulheres que fervilhavam estupidamente ao redor das capelas milagrosas, grasnando cânticos” (Moulinas 1982).
No início do século XIX, a peregrinação, desprezada pelas elites iluminadas e perseguida pelas autoridades civis e religiosas, encontrava-se moribunda. Contudo, durante estes mesmos anos, no âmbito do Romantismo, uma mudança de espírito começava a despontar. Na Alemanha, Achim von Arnim recolheu as diferentes formas de expressão da poesia popular nas “Das Knaben Wunderhorn”, associando às peregrinações a sua alma escondida. Na mesma época, em França, Chateaubriand no “Génio do Cristianismo”, longe de partilhar o desprezo dos intelectuais pelas devoções populares, reabilitou as peregrinações, afirmando que feitas, num espírito inocente, elas eram mais eficazes contra a infelicidade, do que todas as desesperantes teorias de pensadores de coração seco.
No renascimento das peregrinações (séc. XIX e XX), os santuários tradicionais, centrados no túmulo de um santo ou numa imagem milagrosa, deixaram de atrair as grandes massas de fiéis, passando este papel a ser desempenhado por santuários como Lourdes (França) ou Fátima (Portugal), onde a Virgem tinha aparecido (e deixado mensagens que fortaleciam a resistência contra novas visões laicas).
Também na Terra Santa, se assistiu a um ressurgimento do interesse pela peregrinação, após a publicação de “Peregrinação a Jerusalém e ao Monte Sinai em 1831, 1832, 1833”. Nesta, o seu autor, Géramb, alertava a opinião católica, e o próprio papado, sobre o abandono dos lugares santos pelos latinos, em favor dos outros cristãos. No seguimento desta campanha de sensibilização, Pio IX restabeleceu, em 1848, o patriarca romano na cidade santa.
Em 1900, o papa Leão XIII promulgou o jubileu romano, tendo este atraído ao Vaticano numerosos peregrinos, aproveitando muitos, as condições vantajosas oferecidas pelas agências de viagens. De facto, a partir do início do século XX, observou-se uma transformação na organização das peregrinações; para além dos progressos técnicos e da rapidez dos novos meios de comunicação (o carro, o autocarro, o comboio e o avião), os profissionais de turismo passaram a ocupar-se da logística inerente às deslocações e à estada dos fiéis, seguindo as determinações estipuladas pelos responsáveis religiosos.
Num ambiente, de novo propício às peregrinações, destacam-se, na Península Ibérica, o despertar de Santiago de Compostela e o desenvolvimento de Fátima. No primeiro, a experiência é central, sendo o objetivo quase periférico (muitos dos que caminham na “antiga rota das estrelas” são agnósticos). No segundo caso, o santuário registou, após 1920, uma afluência crescente, tendo as visitas sucessivas de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco reforçado o lugar de Fátima, na sensibilidade religiosa do mundo contemporâneo.
Com o nascimento do Estado de Israel, em 1948, e a construção de navios mais espaçosos e mais rápidos, as viagens à Terra Santa ganharam um novo fôlego, estendendo-se a peregrinação, em cruzeiros, a toda a bacia do mediterrâneo. No final dos anos 60, as agências de viagens multiplicam-se e algumas especializam-se no turismo religioso.
Embora no plano espiritual, a peregrinação a Jerusalém guarde uma incontestável prioridade, Roma mantém um acesso mais fácil para os cristãos europeus, podendo aí combinar-se o misticismo com outras motivações. Comboios especiais, autocarros e voos fretado ou/e de baixo custo, asseguram viagens rápidas e a preços acessíveis. Congressos, beatificações, canonizações, assim como as grandes festas litúrgicas (Páscoa e Natal, em particular), fazem acorrer, todos os anos, contingentes numerosos de fiéis.
Ao longo dos cerca de 2000 anos da sua existência, constata-se que as peregrinações vivem alternadamente épocas de exaltação e de crise: as primeiras ocorrem quando as classes dirigentes (tanto laicas como religiosas) protegem os santuários mais procurados e incrementam as deslocações de peregrinos; as segundas têm lugar quando alguns líderes de opinião conseguem sugestionar os governantes contra as peregrinações. No séc. XXI, as peregrinações deixaram de ser, exclusivamente, uma questão de fé e de prática religiosa. O turismo religioso passou a ser um contributo ativo para muitos agentes do setor e para o bem-estar económico de muitas pessoas (nomeadamente, as que residem e trabalham em cidades santuário de projeção internacional, ou ao longo dos caminhos de peregrinação). Na atualidade, independentemente das crenças e ideais, tanto as autoridades, como as populações, se esforçam, e tentam contribuir, para o fortalecimento e desenvolvimento do turismo religioso.
Professor Coordenador da ESHTE | Área Científica de Ciências Sociais e Humanas, Área Científica de Planeamento Turístico e Área Científica de Técnicas e Tecnologias de Aplicação
Bibliografia
Ambrósio, Vitor (2000). Fátima: Território Especializado na Recepção de Turismo Religioso. Lisboa: Instituto Nacional de Formação Turística.
Malherbe, Michel (1992). Les Religions de L’Humanité. Paris: Criterion.
Moulinas, René (1982). Le Pèlerinage Victime des Lumières. In Jean Chélini e Henry Branthomme (coords.), Les Chemins de Dieu: Histoire des Pèlerinages Chrétiens, des Origines a nos Jours (pp. 259-92). Paris: Hachette.
Rapp, François (1982). Mutations et Difficultés du Pèlerinage à la fin du Moyen Age (XIVe-XVe). In Jean Chélini e Henry Branthomme (coords.), Les Chemins de Dieu: Histoire des Pèlerinages Chrétiens, des Origines a nos Jours (pp. 209-34). Paris: Hachette.
Sauzet, Robert (1982). Contestations et Renoveau du Pèlerinage au début des Temps Modernes (XVIe-début XVIIe). In Jean Chélini e Henry Branthomme (coords.), Les Chemins de Dieu: Histoire des Pèlerinages Chrétiens, des Origines a nos Jours (pp. 235-58). Paris: Hachette.