OPINIÃO - LUÍS BOAVIDA-PORTUGAL
O património urbano e o turismo de cidades
É reconhecido ao urbanista italiano Gustavo Giovannoni o estabelecimento do conceito de “património urbano”, alargando o reconhecimento do valor patrimonial aos tecidos urbanos e reorientando o enfoque que até aí se cingia apenas aos monumentos, enquanto objetos de valor. Este conceito integrou, assim, os múltiplos conteúdos, tangíveis e intangíveis, da cidade histórica.
O conjunto do tecido urbano histórico, independentemente da presença de valores monumentais[1], incluindo o parque edificado de mero acompanhamento, mas também o espaço público urbano, as ruas, praças e largos, os modos de vida, as chaves da identidade do lugar, são o verdadeiro objecto patrimonial nesta visão territorial e integradora.
Se Giovannoni se apoiou na abordagem pioneira ao património e à “arte das cidades” de Camillo Sitte, estabelecida em finais do século XIX, levou contudo esta abordagem a novas dimensões, sobretudo no que concerne à reflexão sobre o papel que as áreas urbanas históricas podem desempenhar na cidade actual.
A questão do desempenho funcional – mas também simbólico – das áreas urbanas históricas, colocada em termos da contemporaneidade, remete a problemática deste património para o domínio do urbanístico e para a sua essencial apropriação pela sociedade actual.
Depois de crescer na primeira metade do século XX como área científica relativamente afastada das questões do património e virada para a “cidade nova” e para a problemática da expansão urbana[2], o urbanismo vem olhando as áreas históricas das cidades como um ambiente construído com qualidades próprias e como um activo que importa valorizar. Desde os anos de 1960, sobretudo com o Townscape de Gordon Cullen, que os elementos do espaço urbano pré-industrial são vistos como encerrando um conjunto de qualidades que humanizam o quadro de vida e apelam aos visitantes.
Por força deste novo paradigma e de iniciativas de investigação em diversas áreas disciplinares, como a sociologia, a antropologia ou a geografia, e a que não foi alheio o contributo do turismo, também a política cultural respondeu ao interesse pelo espaço urbano histórico, desenvolvendo instrumentos de gestão para estas áreas, enquanto conjuntos patrimoniais coerentes[3].
A presença de valores patrimoniais, quer tangíveis, como o edificado e o espaço público, quer intangíveis, como os modos de apropriação do espaço, a luz, as práticas sociais, enfim, tudo o que concorre para a formação de uma identidade, são os factores de atractividade destas áreas. Trata-se de um “ambiente urbano”, algo de complexo e, por vezes, quase indefinível, mas que, mais do que os monumentos, é o que se procura captar quando se visita estas cidades únicas.
O património urbano, no sentido mais amplo que lhe atribuiu Giovannoni, é assim um elemento essencial para o turismo de City Breaks. No contexto europeu, a descoberta das cidades do “velho mundo”, de origem remota no tempo e sedimentadas ao longo de séculos, constitui uma motivação essencial, que enquadra outras motivações subsidiárias.
Atendendo à natureza complexa deste património, de que ressalta o seu carácter essencialmente “urbano”, no sentido cultural, mas também territorial, funcional, social e económico, torna-se patente a inadequação, no que concerne a abordagem aos seus problemas, das políticas públicas herdadas de uma perspectiva arcaica do património monumental. Neste sentido, as chamadas políticas dos “R” – a reabilitação, intervenções físicas destinadas a promover condições de utilização dos edifícios e espaços públicos, a revitalização e a regeneração, dirigidas à base socioeconómica local – passaram a enquadrar as estratégias de acção e a estar presentes no debate público e na agenda política.
Tratando-se de um conjunto vasto, integrando valores tangíveis e intangíveis, e num contexto em que o edificado é, sobretudo, de propriedade privada, a sua gestão impõe uma perspectiva estratégica capaz de lidar com múltiplas dimensões e fomentar o seu potencial para o desenvolvimento. Importa assegurar nestas áreas históricas a capacidade de atracção de funções sociais e economicamente relevantes, nas quais se incluem as ligadas ao sistema turístico, que promovam a sua resiliência e sustentabilidade.
É certo que as questões da sustentabilidade do património urbano, da sua capacidade de atrair investimentos e se afirmar num quadro de competitividade urbana, devem andar a par da defesa dos seus valores identitários – embora aceitando o carácter dinâmico da identidade – e do reconhecimento do valor patrimonial destes territórios. A este respeito, a evolução do pensamento da UNESCO nas últimas décadas, patente nos seus documentos doutrinários e orientativos e na sua actuação no terreno, é especialmente inspiradora.
Releva para este argumento que a sustentabilidade destes “centros históricos”[4] como áreas urbanas depende da sua capacidade de integrar as dinâmicas da cidade. A questão da convivência com as necessidades actuais, da integração da mudança como factor indispensável à sustentabilidade[5], evidencia o paradoxo com que se debate este património, preso entre a continuidade do lugar e a necessidade de lidar com as tensões urbanas. A complexa relação que se estabelece nas áreas históricas com o turismo deve ser entendida, neste contexto, como uma chave para a sustentabilidade do processo urbano, um contributo para garantir "um futuro para o nosso passado"[6].
Embora sem um total consenso nas ciências da cidade sobre os efeitos do turismo em áreas históricas, diversos autores vêm defendendo o contributo do sector para o processo da sua revitalização e regeneração, contributo a que não é alheia, não se esgotando, a oportunidade de reabilitação do parque edificado.
Trata-se, assim, através da definição de objectivos estratégicos de desenvolvimento, da implementação dos instrumentos de gestão adequados e da mobilização dos stakeholders que atuam no sistema, de criar sinergias com base nos recursos patrimoniais, enquanto se controlam os factores de risco que os ameaçam.
A armadilha da suburbanização, em que muitas cidades portuguesas caíram, retira valor das áreas históricas centrais, descaracteriza e empobrece a identidade urbana e compromete a sua competitividade e capacidade de atrair investimentos. De facto, e sem prejuízo do seu conteúdo patrimonial, trata-se também nestas áreas da otimização de um “capital fixo instalado”, tema abordado actualmente no urbanismo no contexto da teorização da “cidade compacta”.
É neste quadro, de procura de um novo papel da cidade histórica na vida urbana actual, que o seu valor de atractividade para o turismo pode encerrar um potencial de desenvolvimento, a partir dos elementos endógenos do sistema patrimonial.
Luís Boavida-Portugal
Professor Coordenador da Área Científica de Planeamento Turístico
Coordenador Operacional do Ramo de Gestão Estratégica de Destinos Turísticos no Mestrado em Turismo
[1] “La beauté n’est pas forcément monumentale”, como disse Ragon
[2] “Town planning began as an attempt, not to understand cities, but to replace them with something better”, como disse Bill Hillier.
[3] Recorde-se o contributo pioneiro da “Lei Malraux” em 1962, na introdução do conceito dos secteurs sauvegardés.
[4] Embora o conceito de centro histórico englobe realidades diversas, é aqui usado no sentido das áreas urbanas centrais e fundadoras das cidades mais antigas.
[5] "An environment that cannot be changed invites its own destruction”, como disse Kevin Lynch.
[6] Tema do Ano Europeu do Património Arquitectónico, promovido pelo Conselho da Europa em 1975.