Gastronomia

Gastronomia, um património apetecível

 

Viajar implica necessariamente dormida e comida fora do ambiente habitual de vivência. Mas comer é também viajar, indo ao encontro das memórias e dos imaginários ligados aos lugares visitados ou de onde viajaram até nós os produtos, os alimentos, as prácticas e as histórias a eles associadas. Comer é uma necessidade básica de todos os dias e é também um acto social e cultural, e uma experiência prazerosa e multissensorial. Com efeito, a forma como os humanos se alimentam é carregada de sentido, conferido pelo significado de comer em conjunto (acto social) e pelos significados atribuídos aos alimentos e às práticas alimentares (acto cultural). Comer é assim um acto bio-socio-cultural e a alimentação um elemento da cultura individual e colectiva.

 

A gastronomia é um património vivo que identifica territórios, grupos e pessoas. Pode ser definida como a arte de bem comer, que assenta na criatividade culinária e se traduz no prazer da mesa. Gastronomia implica conhecimento e paixão. Gastronomia é a alta cozinha associada a momentos de excepção e, por vezes de luxo, e é também a tradição alimentar de um determinado território, valorizada, reinterpretada e trazida para o presente.  É o discurso sobre a mesa e a possibilidade de escolha, é subjectividade e diversidade de gostos e de opiniões. Qualquer que seja a definição, três dimensões são fundamentais no conceito de gastronomia: os produtos, a sua origem e os modos de os preparar (a arte da cozinha), a sociabilidade em torno da mesa (o prazer da mesa) e os saberes e o gosto, quer de quem prepara, quer de quem aprecia a comida (o saber gastronómico). A arte de bem comer envolve assim os produtos (quer os ingredientes principais, quer os temperos e aromas de um prato), os métodos e os processos de preparação culinária, os livros de receitas e as receitas orais, os utensílios e os equipamentos de cozinha, os espaços culinários, os empratamentos e a encenação da comida, a estética da mesa e dos espaços envolventes (louças, talheres, vidros e cristais, tecidos e elementos decorativos), os menus, as bebidas, os queijos e a doçaria, e todos aqueles que dão sentido a este vasto conjunto de aspectos: os que produzem, os que vendem, os que preparam e os que comem. São eles, afirmava Brillat-Savarin, os agricultores, os viticultores, os pescadores, os caçadores, os Chefs e as suas brigadas de cozinha e, finalmente, os convivas.

 

Desde o início do século que a gastronomia é reconhecida como componente do património cultural. França foi pioneira neste reconhecimento. Em 1989 é criado o Conselho Nacional das Artes Culinárias, publicada legislação e realizado um inventário do património culinário francês. Em Portugal, data de 2000 a Resolução do Conselho de Ministros (n.º 96/2000, de 26/7) que consagra “a gastronomia portuguesa como um bem integrante do património cultural de Portugal”, fundamentando-se no reconhecimento de um “vasto património intangível” que, “muitas vezes sem suporte físico”, contribui para a “caracterização de certos aspectos de uma nação ou das partes que a compõem”. A Lei de Bases do Património Cultural (Lei n.º 107/2001, de 8/9), publicada no ano seguinte, identifica como património cultural não apenas aos bens materiais, mas também os bens imateriais e a cultura tradicional popular, referindo a alimentação como parte integrante do património cultural imaterial: “especial protecção devem merecer as expressões orais de transmissão cultural e os modos tradicionais de fazer, nomeadamente as técnicas tradicionais de construção e de fabrico e os modos de preparar os alimentos”. A Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial, aprovada pela UNESCO em 2003 e ratificada por Portugal em 2008, consolida estas perspectivas, definindo património cultural imaterial como “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, nalguns casos, os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu património cultural”.  Esta Convenção veio possibilitar a classificação e inscrição na lista do Património da Humanidade de elementos fundamentais das culturas tradicionais, como é o caso do Fado e do Cante Alentejano, mas também de aspectos das culturas alimentares, como é o caso da Dieta Mediterrânica. Anteriormente já as paisagens vitivinícolas do Alto Douro e das Vinhas da Ilha do Pico tinham sido classificadas como paisagens culturais. Estas classificações têm grande impacto no desenvolvimento destes locais e na sua capacidade de atracção turística.

 

Também o papel da gastronomia e vinhos como motivação turística e como componente da experiência turística tem sido amplamente reconhecido desde o início do século, quer pela academia, quer pelos stakeholders. As primeiras reflexões neste domínio surgem nos anos noventa do século passado, com um artigo em que se abordava a gastronomia e o turismo numa perspectiva de sustentabilidade e de impacto do turismo nas culturas locais (Reynolds, 1993). Desde então os estudos têm-se multiplicado acompanhando a articulação entre gastronomia e turismo e reconhecendo-se a existência de um turismo gastronómico.

 

Em 2012 a Organização Mundial de Turismo (OMT) publica o primeiro relatório sobre turismo gastronómico e em 2017 o Segundo Relatório Global sobre Turismo Gastronómico. Na introdução deste último, o Secretário-Geral da OMT afirma que a gastronomia é uma tendência da moda, um hobby para milhares, e uma das principais razões para muitos viajarem, sendo procurada pelos turistas da mesma forma que outros elementos das culturas visitadas, como a arte, a música ou a arquitectura. Ao longo deste Relatório salienta-se ainda que o turismo gastronómico oferece um enorme potencial para estimular as economias locais, regionais e nacionais e melhorar a sustentabilidade e a inclusão, contribuindo positivamente para muitos níveis na cadeia de valor do turismo, como a agricultura e a produção agro-alimentar, e promovendo o crescimento económico inclusivo e sustentável, a inclusão social, o emprego e a redução da pobreza, a eficiência dos recursos, os valores culturais, a diversidade e o património.

 

Em Portugal, a gastronomia e vinhos constitui um “produto” considerado estratégico para o turismo (Plano Estratégico Nacional Para Turismo 2006-2012 e 2013-2015, e Estratégia Turismo 2027), estimulando dinâmicas de oferta e de procura turística, e reconfigurações das paisagens e dos patrimónios locais. Lisboa constitui um exemplo de renovação e de gastronomização sem precedentes, que se traduz numa multiplicidade de mudanças ao nível dos espaços e dos conceitos de restauração, das práticas de comensalidade, das representações ligadas à comida, dos diferentes tipos de cozinhas (tendo conferido a certos bairros da cidade uma ambiência gastronómica anteriormente inexistente), da organização de eventos, do touring e das experiências gastronómicas e de vinhos. Dessa renovação faz parte a emergência de uma alta cozinha portuguesa, protagonizada por uma geração de jovens e inovadores Chefs, coexistindo com a cozinha tradicional e com as cozinhas trazidas de outros lugares do mundo pelas comunidades imigrantes que hoje habitam a cidade. A conquista de cada vez mais estrelas Michelin reflecte esta aposta na gastronomia. Cada vez mais os premiados são Chefs mais jovens e com formação em escolas nacionais, o que nos enche de orgulho como instituição pioneira no ensino ligada à cozinha e à restauração.

 

Em 2020 continuemos este trabalho e apreciemos a cozinha a estética da gastronomia que o nosso país tem para oferecer.

 

Bom Ano!

 

Raquel Moreira

Professora Adjunta da ESHTE | Área Científica de Ciências Sociais e Humanas

Investigadora do CRIA/NOVA-FCSH